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Como mais uma comodidade para meus leitores preguiçosos, adentremos os rincões da crise aérea e procuremos informações de quem realmente entende do assunto.
Muitas informações estão sendo veiculadas por mídias cuja credibilidade se põe a risco por culpa de seu tendencionismo.
De um lado, temos Marilena Chaui dizendo que viu um jornalista televisivo dizendo que o governo havia matado duas centenas de pessoas.
De outro, informações desconexas sobre aquaplanagem, grooving e mais termos técnicos que a vasta população desconhece.
E também temos Paulo Henrique Amorim, sem título nenhum de aviação (e que, justamente por isso, poderia muito bem fazer parte da Anac), falando sobre a aderência da pista de Congonhas. Claro, aderência é com ele mesmo - a tudo o que está no governo ele adere com uma facilidade... Enfim, em meio a tantas algaravias distantes de nossa realidade, eis que resolvo tirar tantas dúvidas com peritos no assunto.
Segue uma maravilhosa entrevista com dois Controladores de Tráfego Aéreo.
Nosso primeiro entrevistado é Ney Dubourcq Araujo, controlador de tráfego aéreo aposentado do Rio de Janeiro, com 28 anos de serviços prestados.
Nosso segundo entrevistado, devido ao fato de ainda se manter na profissão há mais de 30 anos, e dada a verve (e qualidade!) de suas denúncias, tendo respondido recentemente a um IPM (Inquérito Policial Militar) por falar sempre a verdade, prefere não ser identificado. Chamaremo-no, portanto, de CTA Bono.
Prontos para vasculhar os escabrosos meandros da crise?
Regulas Defaecare - Muita da "culpa" da crise aérea, que já dura mais de 9 meses, foi atribuída à falta de obediência dos controladores de vôo. O que pode ser esclarecido a esse respeito, haja visto que pouco ou nada se ouviu dos próprios controladores?
Ney Dubourcq Araujo - É preciso entender-se que a mídia só passou a ter acesso mais abrangente aos bastidores da Proteção ao Vôo brasileira após o acidente envolvendo o Boeing da Gol e o Legacy de matrícula norte-americana.Entretanto, posso assegurar que a crise surgiu como conseqüência de uma “bola de neve” que vinha se avolumando desde muitos anos. Quando a bola de neve atingiu dimensões insuportáveis, ceifando vidas humanas, a capacidade de resistência dos Controladores se esgotou.
CTA Bono - Pois o Controlador de Tráfego Aéreo não recebe nenhum apoio jurídico, psíquico ou qualquer tipo de informação por parte da Aeronáutica no caso de acontecer um acidente. Apenas recebem ordens de não falar nada, até que seja dada essa opção, para não envolver o Governo em situações comprometedoras.
O CTA, independentemente de ser militar ou civil, é largado sem nenhuma orientação para responder a processos.
Por isso que os CTA`S resolveram se associar e, no caso do civis, a se sindicalizar, para poder ter esse apoio que nunca foi dado a esses profissionais.
Ney - A despeito do reconhecimento de responsabilidade no acidente por parte também do órgão de controle que tinha sob sua responsabilidade as duas aeronaves envolvidas, seria injusto não se fazer um retrospecto mostrando os vários fatores contribuintes para um final tão infeliz.
CTA Bono - Vários foram os fatores que contribuíram para aquela fatalidade.
Poderia citar pelo menos 3:
1 – O software tem problemas na sua arquitetura devido a ter sido concebido com especificações inadequadas à operação, pois em nenhum momento os sargentos e civis controladores são questionados na confecção do software.
Aí pega-se um oficial que não é o mais talhado para essa finalidade, e faz-se especificações, que mais tarde terão que ser corrigidas pelo pessoal operacional (CTA's) que informarão à chefia que se necessita de muitas correções naquilo que já se está usando na prática, no tempo real, para ajudar a controlar os aviões.
Isso leva tempo, muito tempo para ser feito, e mais dinheiro, muito mais dinheiro para se incluir uma alteração.
O software contribuiu e muito com uma falha que era o seguinte:
A etiqueta da aeronave na tela radar levava o CTA a acreditar que o avião estava em um nível de vôo que não estava. E isso já vinha sendo apontado, bem antes do acidente, como um fator contribuinte em um possível acidente. E aconteceu.
Era uma não-conformidade da sua especificação. E ainda não foi consertada essa falha, e nem as outras tantas já informadas há muito tempo à Aeronáutica e à empresa ATECH, que produziu e faz as alterações.
Por isso que o nosso amigo Ney diz que não é compatível o serviço prestado ser militarizado, pois o CTA depende desta ferramenta para poder prestar um serviço seguro à aviação, e quando ele faz muitas restrições aos equipamentos, é ordenado que ele se cale e continue a trabalhar sob pena de ser preso como agitador terrorista, entre outras coisas.
2 – Os CTA`s recém saídos das escolas de formação não poderiam estar trabalhando em Centros de Controle de Aérea ACC`s, pois esse locais necessitam que se tenha muita experiência para se trabalhar.
Os CTA`s primeiramente teriam que passar por períodos de trabalho em uma Torre de Controle para ganhar experiência, e depois de alguns anos, quando esse CTA já estiver seguro e com as normatizações já bem estabelecidas em sua rotina, é que se poderia pensar em enviar esse CTA para trabalhar em um Centro de Controle de Área ACC.
Nem todo CTA de torre será um dia um CTA de ACC ou de Terminal APP.
Essa falta de experência e de vivência, contribue, e muito, para que acidentes continuem a acontecer.
3 – Os equipamentos estavam falhando na sua detecção, não mostravam na tela o que deveria estar sendo mostrado, falhando por várias vezes, e as freqüências também, pois como foi falado, por diversas vezes foi tentado um contato com o avião americano e não foi possível.
Para mim, o fator que mais contribuiu para o acidente foi os pilotos americanos terem desligado o transponder. Se o transponder estivesse ligado o acidente não teria acontecido, pois o equipamento conhecido como TCAS teria comandado as curvas anti-colisão, mesmo que os pilotos não o fizessem, para ambas as aeronaves, se o transponder estivesse ligado. Mas como não houve detecção radar por parte do avião americano, o acidente aconteceu de fato.
Ney - Dentre as várias restrições à qualidade da prestação de nossos Serviços de Tráfego Aéreo, aponto uma das de maior peso em todo o contexto: O jugo militar, particularmente no Controle de Tráfego Aéreo.
Não é difícil compreender os motivos. Os Controladores, militares em sua maioria, não são culpados por serem compulsados a exercer, simultaneamente, duas funções diametralmente opostas: a militar e a técnica.
Para a primeira, o suboficial ou sargento é moldado para cumprir ordens, sem questionamentos. Para a segunda, o técnico é formado para dar instruções e autorizações de tráfego aéreo, as quais, em nosso caso, têm um caráter determinativo. Além disso, os órgãos de controle são chefiados por militares que, não poucas vezes, são indicados para a função pela patente e não, necessariamente, pela capacidade técnica.
Disso resulta um fato que, pelo meu prisma particular, repercute diretamente na qualidade do serviço prestado: o chefe, como oficial militar, comanda, em lugar de gerenciar.
Controle de Tráfego Aéreo requer gerenciamento e operação criativos, sob pena de a atividade fim ser negligenciada.
CTA Bono - Apenas citarei um fato que mostra a negligencia destes, pois é notório que existe uma grande falta de Controladores de Tráfego Aéreo para ocupar os principais Centros de Controle, Controle de Aproximação e Torre de Controle de Aerodromos: Há 21 anos não se formava profissionais CTA's civis do grupo Dacta para essa atividade - eu disse 21 anos.
Regulas Defaecare - O presidente da Infraero, brigadeiro José Carlos Pereira, segundo relatos de confidentes, teria dito que ocupa mais um mandato-tampão, e que a Infraero não controla nada, quem manda mesmo são as empresas aéreas. Os senhores têm alguma informação sobre a burocratização do setor?
Ney - Desconheço tal declaração do presidente da Infraero. De qualquer modo, não creio que as empresas aéreas tenham tanto poder assim. E não esqueçamos que a cultura militar se impõe também sobre elas.
Regulas Defaecare - A Anac foi criada em substituição ao DAC (Departamento de Aviação Civil), que era um órgão ocupado apenas por profissionais da área. A Anac, por outro lado, é controlada e dirigida por pessoas de outros setores, muitos que chegaram ali por indicação. Há, numa prova da Anac, inclusive, uma questão sobre a ex-prostituta Bruna Surfistinha. A Anac pode efetuar um bom serviço, ou urge revogar a lei de sua criação e reconstruir o DAC?
Ney - A meu ver, o problema surgido com a criação da ANAC não foi a desmilitarização, ainda que parcial, e sim a má escolha dos técnicos que assumiram a direção da Agência. É óbvio que esta tem condições de prestar excelentes serviços, desde que devidamente adequada à nossa realidade técnico-operacional.
CTA Bono - Todos que ali estão hoje na ANAC e Infraero com cargos de chefia são indicados pelo governo, em todos os altos escalões - são ex-Brigadeiros, ex-Coronéis, etc... Pessoas que pertencem aos partidos que apoiam o governo, e os técnicos antigos que detinham a experiência e a vivência neste setor foram colocados em segundo plano e não atuam nas desições dos altos escalões, e aí está acontecendo tudo que estamos vendo: decisões erradas e sempre conturbas na hora de se prestar esclarecimentos nas horas fatais. Erros em cima de erros.
Regulas Defaecare - E quanto ao Ministério da Defesa, criado em 1999 e que nunca foi ocupado por alguém gabaritado no assunto?
Ney - No meu ponto de vista particular, Nelson Jobim oferece excelentes perspectivas.
CTA Bono - Mas vamos esperar para ver se existe comprometimento com o Governo para se continuar a tapar buracos, ou se, realmente, pela primeira vez, teremos um ministro de Estado da Defesa Aérea que terá a coragem de fazer as transformações que são necessárias.
No seu primeiro pronunciamento deixou claro que agora quem manda é ele, e quem não estiver satisfeito pode pular fora. Isso foi um recado para todos, inclusive os ministros militares.
Acho que a solução mais adequada para o que estamos vivenciando no setor aéreo está além da compreensão e do esforço de uma única instituição e conclamamos o Governo Federal a chamar os grupos representativos da área de transporte aéreo - SNA, SNTPV, SNEA, INFRAERO, ABAG, FAB - que já faziam parte do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), acrescidos agora da Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Transporte Aéreo (SBTA), que congrega as maiores inteligências do país na área afetada, da Associação de Pilotos e Proprietários de Aviões (APPA), da Associação Nacional em Defesa dos Direitos dos Passageiros do Transporte Aéreo (ANDEP), além da própria FEBRACTA.É o único caminho responsável, acreditamos.
O único problema é que o PT já enxergou que, se o Jobim fizer tudo que se espera desta pasta, e resolver pelo menos em parte o CAOS Aéreo, ele possivelmente será o candidato a presidente pela sua conduta e governabilidade que adquiriu à vista da população. Só que ele é do PMDB. Então não sei até que ponto o Governo quer que tudo isso seja resolvido pelo PMDB.
Regulas Defaecare - A Anac foi criada por proposta do Executivo em 2000, ainda sob a égide do governo FHC. Muito se reclama, também, do laxismo de outros governos. A crise aérea no Brasil tem raízes antigas? Houve descaso nesse governo e em outros?
Ney - Talvez tenha existido laxismo por parte dos governos, na medida em que não cumpriram o dever de supervisionar e fiscalizar a influência negativa do jugo militar na Proteção ao Vôo em nosso país. Quanto às raízes antigas que conduziram o Brasil à chamada “crise aérea” atual, na resposta à primeira pergunta falei alguma coisa a respeito. Claro que outros importantes fatores contribuíram para a presente situação, como, por exemplo, a não correspondência da tecnologia existente com o crescimento vertiginoso da aviação em nosso espaço aéreo.
Regulas Defaecare - Muitos incidentes vêm sendo notificados nos aeroportos, nos últimos tempos, mas alguns só ganharam veiculação depois do acidente da TAM (como o incêndio no aeroporto Santos Drummont). Eles são freqüentes ou só ganharam notoriedade depois da crise?
Ney - Verdade seja dita: incidentes de tráfego aéreo (não incluo neste contexto o incêndio no aeroporto Santos Dumont) sempre foram freqüentes em nosso espaço aéreo. O que ocorria era o fato de, muitas vezes, não serem reportados pelas partes envolvidas ou, quando relatados noutras oportunidades, os relatos não eram encaminhados aos órgãos competentes. Hoje é diferente, com o acesso da imprensa aos bastidores militar-operacionais.
CTA Bono - Como CTA de mais de 30 anos de serviço, posso afirmar que os acidentes acontecem todos os dias, mas só vão a conhecimento da população quando há vítimas.
Regulas Defaecare - O sistema de controle de vôos, há tempos, tem sua eficiência questionada. Algumas declarações esparsas, encontradas na mídia, parecem indicar que isso nunca aconteceu dessa forma, e o problema tem poucos anos de existência. Os senhores podem falar algo sobre isso?
CTA Bono - Isso vem sendo relatado há muitos anos nos livros de ocorrências operacionais dos órgãos de controle de tráfego séreo. Todos os dias são feitos relatos de inoperâncias de equipamentos, de freqüências que não funcionam como deveriam, de radar com problemas, de CTA's com problemas de saúde, do software com problemas, de acidentes que quase resultaram em fatalidades.
Regulas Defaecare - É seguro viajar de avião, hoje?
Ney - Eu continuo viajando, sempre que necessário, e sem medo.
CTA Bono - Sim, confio e muito no serviço prestado por esses profissioanais, que dão o sangue todos os dias para manter essa estrutura funcionando.
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